No final do século XV e início do XVI, a cidade de Paris não desfrutava de muita estima por parte dos reis franceses. Luís XI (reinado 1461 – 1483) debatera, inclusive, a possibilidade de transferir a capital do reino para Tours, enquanto Carlos VIII (1483 – 1498) e Luís XII (1498 – 1515) pouco apareciam na cidade. Mesmo o renascentista Franciso I (1515 – 1547) preferia desfrutar o luxo do castelo de Chambord e de outros palácios da região do vale do Loire.
No entanto, alguma coisa havia melhorado na relação coroa-capital. No plano das finanças, por exemplo, institui-se um sistema chamado rentes sur l’Hôtel de Ville, uma espécie de financiamento da cidade para a coroa – que, nessa época, estava envolvida em uma série de conflitos esparsos – e que recebeu mais tarde o nome de Guerras da Itália (1494 – 1559).
Ironicamente essas campanhas militares, das quais participavam os nobres, fizeram com que o movimento renascentista – já devidamente consolidado na Itália – ganhasse força entre a dinastia real e as elites política e intelectual da França. Arquitetos e pintores italianos, como o próprio Leonardo da Vinci, foram convidados a trabalhar na França.
Com o advento da imprensa na segunda metade do século XV, textos clássicos da Antiguidade tornavam-se acessíveis a partir de traduções. A primeira loja de impressão de Paris foi fundada na década de 1470; por volta de 1500, só perdia para Veneza em produção de livros; e ao longo do século XVI a cidade transformar-se-ia no maior centro impressor da Europa. Somente na rue Saint-Jacques chegou a haver 160 lojas de impressão! Mapas da cidade começaram a circular na década de 1530.
No plano urbanístico, projetos como o da reforma do Louvre para servir como residência real e a construção de um novo prédio para a Prefeitura (Hôtel de Ville) comprovam a tese de que a coroa e Paris já não eram tão hostis uma a outra..
Mas diversas outras melhorias urbanas menos espetaculares foram empreendidas. Entre elas, citamos:
1) a construção, entre 1504 e 1512, de uma nova ponte para substituit a Pont Notre Dame, incluindo a construção de 68 casas – simétricas e arrematadas por dois arcos nas extremidades – sobre a própria ponte;
Pont Notre-Dame, por Nicolas-Jean-Baptiste Raguenet (1756)
2) destruição do portão da antiga muralha de Filipe Augusto na rue Saint-Martin, possibilitando uma visão initerrupta desde a igreja Saint-Séverin, na margem esquerda, até a muralha de Carlos V (cujo traçado passava pelos atuais boulevards Saint-Martin e Saint-Denis);
3) alargamento de ruas, deixando-as com um traçado mais reto, como a atual rue de la Cité;
4) os quais das duas margens foram alinhados, levantados (para reduzir o risco de alagamentos) e, a partir do final da década de 1520, pavimentados;
5) leis municipais de 1554 e 1560 proibiam beirais nas fachadas das casas, com o objetivo de melhorar a iluminação natural das ruas e produzir fachadas mais alinhadas;
6) em 1506, criou-se um imposto apelidado de “imposto da lama” (taxe aux boues) para pagar o serviço (ainda bastante rudimentar) de limpeza de ruas e remoção de lixo.
Marais e Les Halles
As reformas urbanísticas promovidas entre o final do século XV e ao longo do século XVI marcaram – e marcam até hoje – dois bairros parisienses: o Marais, mais a leste, e Les Halles, próximo do Louvre.
Quando, em 1528, Francisco I decidiu reformar o Louvre, toda a área ao redor se beneficiou, tornado-se uma espécie de complexo palaciano. Mais tarde, na década de 1560, a rainha Catarina de Médicis faria construir um palácio e um jardim magníficos ao lado do Louvre, o Palácio das Tulherias (incendiado e destruído em 1871).
Fachada do Palácio das Tulherias em 1810 a partir da place du Carroussel, por Joseph-Louis Hippolyte (pintado em 1862)
No Marais, a mudança de perfil tem origem no momento em os reis franceses passaram a se hospedar em residências próprias, como o Hôtel Saint-Pol – apreciado sobretudo por Carlos V (1364-1380) e Carlos VI (1380-1422) – e o Hôtel de Tournelles – valorizado pelo duque de Bedford durante a “ocupação inglesa” de 1420-1437.
A coroa decide então lotear essas terras onde ficavam suas residências e vendê-las para ricos compradores, começando por Saint-Pol. A nobreza francesa passa a construir belas e suntuosas residências, os hôtels particuliers, dos quais restam alguns exemplos nos dias de hoje, como as sedes dos museus Carnavalet, Cognac-Jay e da Biblioteca Histórica da Cidade de Paris.
No caso de Les Halles, a própria instalação da família real já era motivo forte para que o bairro se expandisse. Como no Marais, diversos terrenos foram loteados, como o Hôtel de Flandre (atual rue Coq-Héron) e o Hôtel de Bourgogne de João Sem Medo (que ficava na atual rue Étienne Marcel).
Na década de 1550, o rei Henrique II (reinado 1547-1559) supervisionou a reurbanização de Les Halles, simplificando e melhorando o sistema viário para atrair clientes imobiliários. O bairro já contava com a igreja de Saint-Eustache, chamada “a catedral de Les Halles”, e ainda ganhou a de Saint-Roch, na rue Saint-Honoré.
Igreja de Saint-Eustache, localizada no 1ºarrondissement de Paris
Margem esquerda
E a margem esquerda? Bom, aqui o desenvolvimento era mais discreto. Mesmo assim, esse pedaço da cidade também passava por transformações importantes e adensamento da população. Por exemplo, no 5º arrondissement, uma área que pertencia ao Collège des Bernardins, entre o quai de la Tournelle e a rue Saint-Victor, foi toda loteada e vendida. No início do século XVI, a região entre a rue Mouffetard e o Jardin des Plantes começava a se formar.
Em 1539, a reabertura da Porte de Buci, no 6º arrondissement, fechada por um século, além da criação da Porte de Nesle, facilitou a comunicação com o restante da cidade, estimulando nobres e funcionários estatais a se instalarem ali.
No 7º arrondissement, a inauguração de uma balsa permitiu o transporte de pedras de Vaugirard (mais ao sul) para as construções do Louvre e do Palácio das Tulherias do outro lado do rio, desenvolvendo a região da nova rue du Bac.
Luxo e marginalidade
O desenvolvimento urbano de Paris no século XVI também pode ser analisado a partir de um duplo ponto de vista: a evolução da indústria do luxo e a preocupação crescente com a segurança de seus cidadãos. Casos de delinquência e marginalidade forçavam os monarcas a adotarem medidas cada vez mais restritivas, incluindo aí a expulsão da cidade daquele sujeito considerado “inconveniente”.
No final da década de 1550 e começa da seguinte, houve um esforço sistemático para reorganizar e profissionalizar as forças policiais da capital, de modo a adequá-las a um leque de atividades cada vez mais amplo.
Em 1518 os bordeis das vizinhaças da rue de Glatigny, na Île de la Cité, foram fechados. Em 1561, a coroa tornaria os bordeis ilegais em toda a França. Essas medidas repressoras associavam-se a outras, de caráter “médico”, em que se pretendia controlar a epidemia de doenças contagiosas, como a própria peste e a sífilis.
Paralelamente, a monarquia estimulava o crescimento da indústria e do comércio de alta qualidade, o de luxo voltado para a elite. O que conhecemos como “moda” hoje em dia – valorização da diversidade, a partir de elementos como corte, tecido e cor – ganhou forte impulso nesse período. Os tingidores, as costureiras, os bordadores e os alfaiates desfrutavam de uma posição na sociedade jamais alcançada.
Artesãos que trabalhavam com pedras preciosas, marfim, vidro e metais refinados também eram muito procurados, assim como a nova indústria dos relógios. No final do século XVI, estimava-se a existência em Paris de mais ou menos trezentos ourives. O lazer como atividade lucrativa crescia e o jeu de paume – uma espécie de precursor do tênis – era um dos divertimentos favoritos dos parisienses abonados.
Pobreza e caridade
O tratamento dispensado aos pobres passava igualmente por mudanças. A Igreja já não era mais considerada competente para cuidar desse assunto sozinha. A administração municipal passou a se interessar pelo tema.
Uma nova legislação municipal sobre assistência aos pobres foi adotada na década de 1530. Criado em 1544, o Grand Bureau des Pauvres, um imposto de combate à pobreza, ele se destinava aos “pobres merecedores”. Ao contrário, aqueles desempregados aptos fisicamente trabalhariam em iniciativas públicas.
Morte de Henrique II e as Guerras de Religião (1562-1598)
Em 1559 o rei francês Henrique II morre de repente, vítima de um acidente. Ele deixa vários filhos e filhas. Apesar disso, a estabilidade política da França se verá seriamente ameaçada. Senão vejamos: seu filho que o sucede, Francisco II, morre um ano depois.
Em seguida, assume seu irmão Carlos IX, que tem 10 anos. Quatorze anos depois, em 1574, morre também Carlos IX. Quem sobe ao poder é Henrique III, que possui 23 anos. Ele também não viverá muito, pois em 1589 é assassinado pelo padre Jacques Clément em Saint-Cloud. Detalhe: ele não possui filhos!
Nessas três décadas (1559-1589) de jovens monarcas, a figura de estabilidade da monarquia francesa talvez tenha sido a mãe desses três reis que pouco duraram no poder: a rainha-mãe e regente eventual Catarina de Médecis.
A questão da sucessão dinástica na França ganha contornos dramáticos, pois o próximo na lista de pretendentes ao trono era o primo de Henrique III, o rei Henrique de Navarra…um protestante! Mais: ele fazia parte de um outro ramo da família Valois, o dos Bourbon. Ora, em 1589, estamos dentro do período que ficou conhecido como as Guerras de Religião envolvendo católicos e protestantes.
O movimento da Reforma Protestante ganhara força com Martinho Lutero na Alemanha, e na França, a disputa vinha se acirrando cada vez mais. Discutia-se uma reforma da Igreja, pelo menos, desde o final do século XV.
Em 1521, a Sorbonne partiu para a contra-ofensiva e condenou Lutero e outros autores humanistas, como Lefèvre d’Étaples. Dois anos mais tarde, o primeiro protestante foi queimado na fogueira em Paris (junto com montes de livros de Lutero). Em 1544, a Sorbonne elaborou um índex de livros proibidos.
Mesmo com a repressão, a causa dos protestantes seguia atraindo fieis, inclusive da elite social e política. Na França, uma versão mais refinada do luteranismo foi proposta por João Calvino, que fugira de Paris para Genebra (Suíça) para evitar perseguições.
Entrevista com historiador Pierre Miquel sobre protestantismo na França
Na década de 1550, já havia quatro igrejas calvinistas em Paris, todas no Quartier Latin. Reuniões secretas eram organizadas em tavernas, em geral nos subúrbios menos vigiados (por exemplo, perto da igreja de Saint-Médard, na rue Mouffetard).
O estopim para hostilidades mais violentas entre católicos e protestantes aconeteceu em 1562. No dia 1º de março desse ano, na cidade de Wassy (região de Champagne), o duque François de Guise – representante de uma das famílias mais poderosas da França, com propriedades no norte e leste do país – junto com seus soldados, invadiu o local onde cerca de 200 protestantes realizavam um ofício religioso e comandou o massacre de dezenas de pessoas.
A partir de então e até 1598, eclodiriam oito “guerras” religiosas, todas pontuadas por tréguas e declarações de paz. Era um conflito que opunha fés e dinastias – a casa dos Bourbon, com sede em Navarra, defensora da causa protestante contra a família Guise, defensora da causa católica.
No meio desse disputa sangrenta, estava Catarina de Médicis, esposa de Henrique II e a mãe daqueles jovens reis que se sucederam entre os anos de 1559 e 1589 no trono da França. Tentando acalmar os ânimos dos dois lados, ela propôs o casamento entre sua filha, Margarida de Valois, com o calvinista Henrique, herdeiro do reino de Navarra. O casamento ficou marcado para agosto de 1572 na catedral de Notre-Dame.
E é nesse mês que ocorre o maior ato de atrocidade por causa das guerras religiosas na Europa do século XVI: o massacre de São Bartolomeu. No dia 24 de agosto, o dobre matutino da igreja de Saint-Germain-l’Auxerrois, ao lado do Louvre, era o sinal para os católicos iniciarem os ataques contra os calvinistas (ou huguenotes).
Foi um verdadeiro banho de sangue, Uma estimativa conservadora fala em 1500 a 2000 mortos em três dias dentro de Paris. Personagens poderosos, como o almirante Coligny, tiveram a cabeça arrancada e as partes expostas na rua. Os cadáveres eram jogados no rio Sena.
Uma cantiga dizia que o sangue no rio Sena era o modo de “levar as notícias até Rouen (reduto protestante) sem precisar de barco”. O massacre acabou com a causa dos huguenotes dentro de Paris e a cidade de maneira geral tornou-se adepta exclusiva dos católicos e do clã dos Guise.
Uma lenda conta que no dia seguinte ao massacre de São Bartolomeu um espinheiro seco subitamente floresceu no cemitério dos Inocentes, perto de Les Halles. Interpretou-se isso como sinal de aprovação divina às atividades do dia anterior, e a árvore tornou-se local de peregrinação popular.
Massacre de São Bartolomeu, por François Dubois
A partir de então, a maior parte dos conflitos entre as duas facções ocorreu no sul e oeste da França. Em Paris, durante a década de 1580, multiplicaram-se as procissões católicas. Os dias eram curtos para todas as procissões que os parisienses qeriam fazer. A propaganda dos ultracatólicos glorificava Paris como uma nova Jerusalém, uma imagem bem distante daquela que os reis quiseram construir no século XVI da Paris renascentista, de uma nova Roma.
A chegada de Henrique IV ao poder
Em 1584, com a morte do duque de Anjou, irmão de Henrique III, abriu-se o caminho para que Henrique de Navarra se tornasse o herdeiro legítimo do trono. No entanto, surgiriam grandes obstáculos. O clã católico dos Guise, sob a liderança do duque François, tratou de assinar um acordo com o rei da Espanha, comprometendo-se todos à “conservação perpétua da religião católica. Estava formada a Santa Liga.
Temia-se que, com a ascensão de Henrique de Navarra, o reino francês se dividisse em várias partes e que a França se tornaria protestante. Em maio de 1588, após uma tentativa fracassada de sufocar manifestações hostis dos parisienses, que lançavam campanhas contra os huguenotes, Henrique III se viu obrigado a deixar a cidade.
A posição dos Guise – e da própria cidade de Paris – sofreu um sério revés em dezembro de 1588, quando o duque François e seu irmão, o cardeal de Guise, foram assassinados pelo próprio rei dentro do palácio real de Blois. A notícia foi recebida com horror na cidade.
No verão de 1589, Henrique III lança uma campanha militar para acabar com a desobediência de Paris. A independência desenfreada de Paris teria de ser coibida. Mas o rei é assassinado no dia 2 de agosto desse ano, crime cometido pelo padre Jacques Clément. Astutamente, porém, o rei agonizante reconheceu Henrique de Navarra como seu sucessor – agora rei Henrique IV.
Mas como governar sem o apoio da capital? Impossível! Henrique IV precisava controlar a cidade de qualquer jeito. Inicialmente ele tentou o uso da força militar, reunindo tropas na Normandia e fazendo o cerco da cidade. Ele percebeu, no entanto, que entrar na cidade com as tropas era tarefa das mais improváveis.
Mas o cerco de 1590 ajudou a expor tensões dentro da cidade. Combinado com a dificuldade de abastecimento de comida, uma seca naquele ano provocaria a morte de milhares de pessoas. Os parisienses também estavam cansados das guerras religiosas após quase 30 anos de hostilidades.
O assassinato de membros do Parlamento por pessoas ligadas à Santa Liga chocou a opinião burguesa e fez com que ela perdesse apoio popular. Com o interesse crescente do rei da Espanha nos assuntos da cidade, havia também o temor de que a cidade virasse marionete daquele país.
Não estranha, portanto, que pessoas ligadas ao clã dos Guise tenham iniciado conversações com Henrique IV para normalizar a situação no país. A questão da abjuração do protestantismo por parte do rei logo foi levantada. Em julho de 1593, o navarrês converteu-se ao catolicismo.
Sua frase “Paris vale mais do que uma missa” fico famosa. Finalmente, em 22 de março de 1594 ele entra na cidade. Os parisienses parecem felizes em vê-lo. O sentimento do perdão parecia guiar ambos os lados.
Na primeira declaração na cidade, o rei disse: “Sua Majestade, no anseio de unir todos os súditos, em particular os burgueses e moradores da boa cidade de Paris, e permitir que vivam em amizade e harmonia, deseja e pretende que seja esquecido tudo o que ocorreu desde que os distúrbios começaram”.
Conveniente! Após a conquista de Paris, era questão de tempo encerrar as Guerras de Religião, o que se consolidou com o Édito de Nantes de 1598, estabelecendo um regime formal de tolerância religiosa.
E, como veremos, seu reinado e o de seus sucessores trouxe mudanças mais duradouras e significativas para Paris do que aquelas introduzidas pelos reis renascentitas. O futuro de Paris era ser uma nova Roma, não uma nova Jerusalém.