Aconteceu em …11!

A mania de criar listas sempre perseguiu o homem. Classificar e categorizar sempre foram maneiras de dar uma certa organização para a realidade caótica que cerca o ser humano. Relembrar datas “redondas” também é prática antiga. Juntei os dois e escrevi o texto a seguir.

O que aconteceu na França nos anos terminados com 11, desde o ano…11? Bom, não sou historiador profissional nem quis criar uma lista muito grande para não chatear meu leitor. Mas dando sequência a essa ideia de relembrar as datas “redondas”, coloquei aqui alguns dos eventos mais marcantes da história francesa.

Na enciclopédia virtual Wikipedia, o primeiro evento digno de nota relacionado a essa série de anos terminados em 11 aconteceu em 411, e não é um registro dos mais positivos: “fome na Gália”. A época era de decadência do império romano e os deslocamentos de grupos populacionais pela Europa causava grande terror e não permitia que as populações já mais sedentarizadas desenvolvessem de maneira duradoura os meios de sobrevivência.

Nesse mesmo ano, está registrado que o “usurpador” romano Constantino sofreu um cerco na cidade de Arles, onde havia montado uma base de poder paralelo a Roma. Constantino chegou a nomear César (imperador) seu filho Constante em 408. Após seu rendimento, ele é levado para a Itália com a garantia de que terá a vida poupada. No entanto, é morto com seu filho a caminho de Roma no dia 18 de novembro de 411.

Quem gostar do assunto, pode descobrir mais a partir desse link, com o texto de Jean-Baptiste Dubos, Histoire critique de l’établissement de la monarchie françoise dans les Gaules.

Em 511, um fato realmente de grande relevância na história da França: no dia 27 de novembro, morria o rei Clóvis, considerado por alguns como o primeiro monarca francês. Com a morte de Clóvis, o reino franco foi dividido entre seus quatro filhos, dando início a um dos períodos mais sangrentos da história francesa.

Poucos meses antes, no dia 10 de julho, ele havia comandado uma espécie de concílio dos gauleses na cidade de Orléans, para determinar o destino de uma nova região, recentemente conquistada, a Aquitaine, no sudoeste da França, que faz fronteira com a Espanha.

Esse encontro, que reuniu 32 bispos de todo o reino, definiu as novas relações entre o poder real e a Igreja Católica e condenou o arianismo (corrente dissidente do catolicismo). Entre as medidas adotadas, estão a isenção de impostos dos bens da Igreja e a criação dos tribunais eclesiásticos, não mais subordinando os clérigos à justiça civil. O concílio também estabeleceu que um terço das rendas dos bispos deveriam ser usados na ajuda aos pobres, aos órfãos, aos doentes e às viúvas. Decisões que, como sabemos, perduraram por muitos séculos ou mesmo que perduram até hoje.

Duzentos anos depois, mais um rei franco morria: Childeberto IV, no dia 14 de abril. Com a sua morte, subiu ao poder seu filho Dagoberto III, que tinha apenas 12 anos. Ele não terá tempo para realizar muita coisa, já que morre em 715, com 16 anos. Nesses quatro anos, o governo será comandado pelos “prefeitos do Palácio“, uma espécie de gerentão do reino, o mais alto funcionário real, aquele que efetivamente dirige os assuntos mais importantes do reino.

É a época de transição da dinastia merovíngia para a dinastia carolíngia. A partir desse início de século VIII, esses prefeitos do Palácio vão ganhar cada vez mais poder até que Pepino, o Breve, filho de Carlos Martel, descendente de um desses prefeitos (Pépin d’Héristal), reúne sob sua autoridade em 751 toda a região ocupada pelos francos. Em 754, ele é coroado rei dos francos pelo Papa em Saint-Denis.

Mais 200 anos e eis que nos encontramos diante de um acordo entre os francos e o chefe normando Rollon. Período de invasões bárbaras. Pelo tratado de Saint-Clair-sur-Epte, assinado no outono de 911, as regiões de Caux e Rouen são cedidas a Rollon pelo rei francês Carlos III, o Simples, criando assim uma espécie de Estado-tampão entre os franceses e a Bretanha.

Rollon aceita  a religião cristã e o arcebispo de Rouen pode retomar os cultos em sua catedral (que ainda não era o prédio gótico tão famosos após as telas pintadas por Claude Monet – sua construção começaria apenas no século seguinte). Em Saint-Ouen, os monges também retomam o controle sobre seus conventos.

Há 1000 anos, aparentemente não aconteceu muita coisa importante. Mas em 1111, Paris sofre uma invasão que destruiria boa parte dos prédios na Île de la Cité. O ataque foi motivado por uma manobra militar feita pelo rei francês Luís VI, o Gordo, que havia destruído parte do condado de Meulan. O conde de Meulan, Roberto I, organiza a represália e a ilha sofre então grandes perdas, inclusive parte do Palais de la Cité, residência real.

Neste ano, podemos comemorar também os 800 anos do início da construção da catedral de Reims, uma das mais belas da França. Albéric de Humert, arcebispo de Reims, deu início à construção, que seguiu sob supervisão do arquiteto Jean d’Orbais. O novo edifício substituía a antiga catedral carolíngea, incendiada um ano antes. Outros três arquitetos se sucederão na construção do prédio: Jean-le-Loup, Gaucher de Reims e Bernard de Soissons.

Já em 1411, um novo evento sangrento para ser lembrado. Na França, os grupos dos borguinhões e armanhaques duelam pelo controle do poder. No dia 23 de outubro, o borguinhão João Sem Medo entra em Paris e termina a construção da torre de sua residência – torre que até hoje se encontra na cidade, na rue Étienne Marcel. Esse conflito, uma verdadeira guerra civil, ocorre no contexto da Guerra dos Cem Anos, no qual a França lutava com a Inglaterra e do Cisma do Ocidente, quando o Papado teve uma sede em Avignon. Em um dos textos que publiquei sobre Paris, há mais detalhes sobre o contexto e as características desse conflito.

Em 1611, é publicado em Paris a quarta edição do livro de Jean de Léry, Histoire d’un voyage faiet en la terre du Brésil, autrement dit Amérique, cuja primeira edição havia aparecido em 1578. É uma das principais obras da literatura de viagem publicadas na França entre os séculos XVI e XVII.

Como evento de destaque em 1711, a morte do escritor e crítico Nicolas Boileau, no dia 13 de março. Entre suas principais obras, estão as Sátiras e Les Épîtres. Em 1811, no dia 18 de setembro, é criado em Paris o Corpo de Bombeiros pelo imperador Napoleão.

1911: há cem anos, fatos curiosos e outros importantes. Por exemplo, foi nesse ano que foi “inventado” o assalto a banco utilizando veículos. A ação foi orquestrada pela famosa “bande à Bonnot”, um grupo marginal que vivia em Montmartre. Ela ocorreu na rue Ordener, 148, no dia 21 de dezembro.

Outro assalto, agora em 22 de agosto: o quadro da Monalisa, de Leonardo da Vinci,  foi roubado do Louvre por um italiano nacionalista, indignado com o fato de o quadro não estar exposto na Itália. Ele dizia que o quadro fora roubado pelos franceses. Na verdade, ele foi doado pelo próprio pintor ao rei francês Francisco I. O quadro foi encontrado dois anos depois.

A política francesa também tem dois motivos para lembrar o ano de 1911. O primeiro é a renúncia à presidência por parte de Aristide Briand. E nesse ano também, no dia 5 de julho, nascia um futuro presidente francês, Georges Pompidou, que governou de 1969 até 1974, data de sua morte.

Voilà alguns eventos para se relembrar esse ano!!!!

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Paris: uma história – parte 5!

No final do século XV e início do XVI, a cidade de Paris não desfrutava de muita estima por parte dos reis franceses. Luís XI (reinado 1461 – 1483) debatera, inclusive, a possibilidade de transferir a capital do reino para Tours, enquanto Carlos VIII (1483 – 1498) e Luís XII (1498 – 1515) pouco apareciam na cidade. Mesmo o renascentista Franciso I (1515 – 1547) preferia desfrutar o luxo do castelo de Chambord e de outros palácios da região do vale do Loire.

No entanto, alguma coisa havia melhorado na relação coroa-capital. No plano das finanças, por exemplo, institui-se um sistema chamado rentes sur l’Hôtel de Ville, uma espécie de financiamento da cidade para a coroa – que, nessa época, estava envolvida em uma série de conflitos esparsos – e que recebeu mais tarde o nome de Guerras da Itália (1494 – 1559).

Ironicamente essas campanhas militares, das quais participavam os nobres, fizeram com que o movimento renascentista – já devidamente consolidado na Itália – ganhasse força entre a dinastia real e as elites política e intelectual da França. Arquitetos e pintores italianos, como o próprio Leonardo da Vinci, foram convidados a trabalhar na França.

Com o advento da imprensa na segunda metade do século XV, textos clássicos da Antiguidade tornavam-se acessíveis a partir de traduções. A primeira loja de impressão de Paris foi fundada na década de 1470; por volta de 1500, só perdia para Veneza em produção de livros; e ao longo do século XVI a cidade transformar-se-ia no maior centro impressor da Europa. Somente na rue Saint-Jacques chegou a haver 160 lojas de impressão! Mapas da cidade começaram a circular na década de 1530.

No plano urbanístico, projetos como o da reforma do Louvre para servir como residência real e a construção de um novo prédio para a Prefeitura (Hôtel de Ville) comprovam a tese de que a coroa e Paris já não eram tão hostis uma a outra..

Mas diversas outras melhorias urbanas menos espetaculares foram empreendidas. Entre elas, citamos:

1) a construção, entre 1504 e 1512, de uma nova ponte para substituit a Pont Notre Dame, incluindo a construção de 68 casas – simétricas e arrematadas por dois arcos nas extremidades – sobre a própria ponte;

Pont Notre-Dame, por Nicolas-Jean-Baptiste Raguenet (1756)

2) destruição do portão da antiga muralha de Filipe Augusto na rue Saint-Martin, possibilitando uma visão initerrupta desde a igreja Saint-Séverin, na margem esquerda, até a muralha de Carlos V (cujo traçado passava pelos atuais boulevards Saint-Martin e Saint-Denis);

3) alargamento de ruas, deixando-as com um traçado mais reto, como a atual rue de la Cité;

4) os quais das duas margens foram alinhados, levantados (para reduzir o risco de alagamentos) e, a partir do final da década de 1520, pavimentados;

5) leis municipais de 1554 e 1560 proibiam beirais nas fachadas das casas, com o objetivo de melhorar a iluminação natural das ruas e produzir fachadas mais alinhadas;

6) em 1506, criou-se um imposto apelidado de “imposto da lama” (taxe aux boues) para pagar o serviço (ainda bastante rudimentar) de limpeza de ruas e remoção de lixo.

Marais e Les Halles

As reformas urbanísticas promovidas entre o final do século XV e ao longo do século XVI marcaram – e marcam até hoje – dois bairros parisienses: o Marais, mais a leste, e Les Halles, próximo do Louvre.

Quando, em 1528, Francisco I decidiu reformar o Louvre, toda a área ao redor se beneficiou, tornado-se uma espécie de complexo palaciano. Mais tarde, na década de 1560, a rainha Catarina de Médicis faria construir um palácio e um jardim magníficos ao lado do Louvre, o Palácio das Tulherias (incendiado e destruído em 1871).

Fachada do Palácio das Tulherias em 1810 a partir da place du Carroussel, por Joseph-Louis Hippolyte (pintado em 1862)

No Marais, a mudança de perfil tem origem no momento em os reis franceses passaram a se hospedar em residências próprias, como o Hôtel Saint-Pol – apreciado sobretudo por Carlos V (1364-1380) e Carlos VI (1380-1422) – e o Hôtel de Tournelles – valorizado pelo duque de Bedford durante a “ocupação inglesa” de 1420-1437.

A coroa decide então lotear essas terras onde ficavam suas residências e vendê-las para ricos compradores, começando por Saint-Pol. A nobreza francesa passa a construir belas e suntuosas residências, os hôtels particuliers, dos quais restam alguns exemplos nos dias de hoje, como as sedes dos museus Carnavalet, Cognac-Jay e da Biblioteca Histórica da Cidade de Paris.

No caso de Les Halles, a própria instalação da família real já era motivo forte para que o bairro se expandisse. Como no Marais, diversos terrenos foram loteados, como o Hôtel de Flandre (atual rue Coq-Héron) e o Hôtel de Bourgogne de João Sem Medo (que ficava na atual rue Étienne Marcel).

Na década de 1550, o rei Henrique II (reinado 1547-1559) supervisionou a reurbanização de Les Halles, simplificando e melhorando o sistema viário para atrair clientes imobiliários. O bairro já contava com a igreja de Saint-Eustache, chamada “a catedral de Les Halles”, e ainda ganhou a de Saint-Roch, na rue Saint-Honoré.

 

Igreja de Saint-Eustache, localizada no 1ºarrondissement de Paris

Margem esquerda

E a margem esquerda? Bom, aqui o desenvolvimento era mais discreto. Mesmo assim, esse pedaço da cidade também passava por transformações importantes e adensamento da população. Por exemplo, no 5º arrondissement, uma área que pertencia ao Collège des Bernardins, entre o quai de la Tournelle e a rue Saint-Victor, foi toda loteada e vendida. No início do século XVI, a região entre a rue Mouffetard e o Jardin des Plantes começava a se formar.

Em 1539, a reabertura da Porte de Buci, no 6º arrondissement, fechada por um século, além da criação da Porte de Nesle, facilitou a comunicação com o restante da cidade, estimulando nobres e funcionários estatais a se instalarem ali.

No 7º arrondissement, a inauguração de uma balsa permitiu o transporte de pedras de Vaugirard (mais ao sul) para as construções do Louvre e do Palácio das Tulherias do outro lado do rio, desenvolvendo a região da nova rue du Bac.

 

Luxo e marginalidade

 

O desenvolvimento urbano de Paris no século XVI também pode ser analisado a partir de um duplo ponto de vista: a evolução da indústria do luxo e a preocupação crescente com a segurança de seus cidadãos. Casos de delinquência e marginalidade forçavam os monarcas a adotarem medidas cada vez mais restritivas, incluindo aí a expulsão da cidade daquele sujeito considerado “inconveniente”.

No final da década de 1550 e começa da seguinte, houve um esforço sistemático para reorganizar e profissionalizar as forças policiais da capital, de modo a adequá-las a um leque de atividades cada vez mais amplo.

Em 1518 os bordeis das vizinhaças da rue de Glatigny, na Île de la Cité, foram fechados. Em 1561, a coroa tornaria os bordeis ilegais em toda a França. Essas medidas repressoras associavam-se a outras, de caráter “médico”, em que se pretendia controlar a epidemia de doenças contagiosas, como a própria peste e a sífilis.

Paralelamente, a monarquia estimulava o crescimento da indústria e do comércio de alta qualidade, o de luxo voltado para a elite. O que conhecemos como “moda” hoje em dia – valorização da diversidade, a partir de elementos como corte, tecido e cor – ganhou forte impulso nesse período. Os tingidores, as costureiras, os bordadores e os alfaiates desfrutavam de uma posição na sociedade jamais alcançada.

Artesãos que trabalhavam com pedras preciosas, marfim, vidro e metais refinados também eram muito procurados, assim como a nova indústria dos relógios. No final do século XVI, estimava-se a existência em Paris de mais ou menos trezentos ourives. O lazer como atividade lucrativa crescia e o jeu de paume – uma espécie de precursor do tênis – era um dos divertimentos favoritos dos parisienses abonados.

 

Pobreza e caridade

 

O tratamento dispensado aos pobres passava igualmente por mudanças. A Igreja já não era mais considerada competente para cuidar desse assunto sozinha. A administração municipal passou a se interessar pelo tema.

Uma nova legislação municipal sobre assistência aos pobres foi adotada na década de 1530. Criado em 1544, o Grand Bureau des Pauvres, um imposto de combate à pobreza, ele se destinava aos “pobres merecedores”. Ao contrário, aqueles desempregados aptos fisicamente trabalhariam em iniciativas públicas.

 

Morte de Henrique II e as Guerras de Religião (1562-1598)


Em 1559 o rei francês Henrique II morre de repente, vítima de um acidente. Ele deixa vários filhos e filhas. Apesar disso, a estabilidade política da França se verá seriamente ameaçada. Senão vejamos: seu filho que o sucede, Francisco II, morre um ano depois.

Em seguida, assume seu irmão Carlos IX, que tem 10 anos. Quatorze anos depois, em 1574, morre também Carlos IX. Quem sobe ao poder é Henrique III, que possui 23 anos. Ele também não viverá muito, pois em 1589 é assassinado pelo padre Jacques Clément em Saint-Cloud. Detalhe: ele não possui filhos!

Nessas três décadas (1559-1589) de jovens monarcas, a figura de estabilidade da monarquia francesa talvez tenha sido a mãe desses três reis que pouco duraram no poder: a rainha-mãe e regente eventual Catarina de Médecis.

A questão da sucessão dinástica na França ganha contornos dramáticos, pois o próximo na lista de pretendentes ao trono era o primo de Henrique III, o rei Henrique de Navarra…um protestante! Mais: ele fazia parte de um outro ramo da família Valois, o dos Bourbon. Ora, em 1589, estamos dentro do período que ficou conhecido como as Guerras de Religião envolvendo católicos e protestantes.

O movimento da Reforma Protestante ganhara força com Martinho Lutero na Alemanha, e na França, a disputa vinha se acirrando cada vez mais. Discutia-se uma reforma da Igreja, pelo menos, desde o final do século XV.

Em 1521, a Sorbonne partiu para a contra-ofensiva e condenou Lutero e outros autores humanistas, como Lefèvre d’Étaples. Dois anos mais tarde, o primeiro protestante foi queimado na fogueira em Paris (junto com montes de livros de Lutero). Em 1544, a Sorbonne elaborou um índex de livros proibidos.

Mesmo com a repressão, a causa dos protestantes seguia atraindo fieis, inclusive da elite social e política. Na França, uma versão mais refinada do luteranismo foi proposta por João Calvino, que fugira de Paris para Genebra (Suíça) para evitar perseguições.

 

Entrevista com historiador Pierre Miquel sobre protestantismo na França

 

Na década de 1550, já havia quatro igrejas calvinistas em Paris, todas no Quartier Latin. Reuniões secretas eram organizadas em tavernas, em geral nos subúrbios menos vigiados (por exemplo, perto da igreja de Saint-Médard, na rue Mouffetard).

O estopim para hostilidades mais violentas entre católicos e protestantes aconeteceu em 1562. No dia 1º de março desse ano, na cidade de Wassy (região de Champagne), o duque François de Guise – representante de uma das famílias mais poderosas da França, com propriedades no norte e leste do país – junto com seus soldados, invadiu o local onde cerca de 200 protestantes realizavam um ofício religioso e comandou o massacre de dezenas de pessoas.

A partir de então e até 1598, eclodiriam oito “guerras” religiosas, todas pontuadas por tréguas e declarações de paz. Era um conflito que opunha fés e dinastias – a casa dos Bourbon, com sede em Navarra, defensora da causa protestante contra a família Guise, defensora da causa católica.

No meio desse disputa sangrenta, estava Catarina de Médicis, esposa de Henrique II e a mãe daqueles jovens reis que se sucederam entre os anos de 1559 e 1589 no trono da França. Tentando acalmar os ânimos dos dois lados, ela propôs o casamento entre sua filha, Margarida de Valois, com o calvinista Henrique, herdeiro do reino de Navarra. O casamento ficou marcado para agosto de 1572 na catedral de Notre-Dame.

E é nesse mês que ocorre o maior ato de atrocidade por causa das guerras religiosas na Europa do século XVI: o massacre de São Bartolomeu. No dia 24 de agosto, o dobre matutino da igreja de Saint-Germain-l’Auxerrois, ao lado do Louvre, era o sinal para os católicos iniciarem os ataques contra os calvinistas (ou huguenotes).

Foi um verdadeiro banho de sangue, Uma estimativa conservadora fala em 1500 a 2000 mortos em três dias dentro de Paris. Personagens poderosos, como o almirante Coligny, tiveram a cabeça arrancada e as partes expostas na rua. Os cadáveres eram jogados no rio Sena.

Uma cantiga dizia que o sangue no rio Sena era o modo de “levar as notícias até Rouen (reduto protestante) sem precisar de barco”. O massacre acabou com a causa dos huguenotes dentro de Paris e a cidade de maneira geral tornou-se adepta exclusiva dos católicos e do clã dos Guise.

Uma lenda conta que no dia seguinte ao massacre de São Bartolomeu um espinheiro seco subitamente floresceu no cemitério dos Inocentes, perto de Les Halles. Interpretou-se isso como sinal de aprovação divina às atividades do dia anterior, e a árvore tornou-se local de peregrinação popular.

 

Massacre de São Bartolomeu, por François Dubois

 

A partir de então, a maior parte dos conflitos entre as duas facções ocorreu no sul e oeste da França. Em Paris, durante a década de 1580, multiplicaram-se as procissões católicas. Os dias eram curtos para todas as procissões que os parisienses qeriam fazer. A propaganda dos ultracatólicos glorificava Paris como uma nova Jerusalém, uma imagem bem distante daquela que os reis quiseram construir no século XVI da Paris renascentista, de uma nova Roma.

 

A chegada de Henrique IV ao poder

 

Em 1584, com a morte do duque de Anjou, irmão de Henrique III, abriu-se o caminho para que Henrique de Navarra se tornasse o herdeiro legítimo do trono. No entanto, surgiriam grandes obstáculos. O clã católico dos Guise, sob a liderança do duque François, tratou de assinar um acordo com o rei da Espanha, comprometendo-se todos à “conservação perpétua da religião católica. Estava formada a Santa Liga.

Temia-se que, com a ascensão de Henrique de Navarra, o reino francês se dividisse em várias partes e que a França se tornaria protestante. Em maio de 1588, após uma tentativa fracassada de sufocar manifestações hostis dos parisienses, que lançavam campanhas contra os huguenotes, Henrique III se viu obrigado a deixar a cidade.

A posição dos Guise – e da própria cidade de Paris – sofreu um sério revés em dezembro de 1588, quando o duque François e seu irmão, o cardeal de Guise, foram assassinados pelo próprio rei dentro do palácio real de Blois. A notícia foi recebida com horror na cidade.

No verão de 1589, Henrique III lança uma campanha militar para acabar com a desobediência de Paris. A independência desenfreada de Paris teria de ser coibida. Mas o rei é assassinado no dia 2 de agosto desse ano, crime cometido pelo padre Jacques Clément. Astutamente, porém, o rei agonizante reconheceu Henrique de Navarra como seu sucessor – agora rei Henrique IV.

Mas como governar sem o apoio da capital? Impossível! Henrique IV precisava controlar a cidade de qualquer jeito. Inicialmente ele tentou o uso da força militar, reunindo tropas na Normandia e fazendo o cerco da cidade. Ele percebeu, no entanto, que entrar na cidade com as tropas era tarefa das mais improváveis.

Mas o cerco de 1590 ajudou a expor tensões dentro da cidade. Combinado com a dificuldade de abastecimento de comida, uma seca naquele ano provocaria a morte de milhares de pessoas. Os parisienses também estavam cansados das guerras religiosas após quase 30 anos de hostilidades.

O assassinato de membros do Parlamento por pessoas ligadas à Santa Liga chocou a opinião burguesa e fez com que ela perdesse apoio popular. Com o interesse crescente do rei da Espanha nos assuntos da cidade, havia também o temor de que a cidade virasse marionete daquele país.

Não estranha, portanto, que pessoas ligadas ao clã dos Guise tenham iniciado conversações com Henrique IV para normalizar a situação no país. A questão da abjuração do protestantismo por parte do rei logo foi levantada. Em julho de 1593, o navarrês converteu-se ao catolicismo.

Sua frase “Paris vale mais do que uma missa” fico famosa. Finalmente, em 22 de março de 1594 ele entra na cidade. Os parisienses parecem felizes em vê-lo. O sentimento do perdão parecia guiar ambos os lados.

Na primeira declaração na cidade, o rei disse: “Sua Majestade, no anseio de unir todos os súditos, em particular os burgueses e moradores da boa cidade de Paris, e permitir que vivam em amizade e harmonia, deseja e pretende que seja esquecido tudo o que ocorreu desde que os distúrbios começaram”.

Conveniente! Após a conquista de Paris, era questão de tempo encerrar as Guerras de Religião, o que se consolidou com o Édito de Nantes de 1598, estabelecendo um regime formal de tolerância religiosa.

E, como veremos, seu reinado e o de seus sucessores trouxe mudanças mais duradouras e significativas para Paris do que aquelas introduzidas pelos reis renascentitas. O futuro de Paris era ser uma nova Roma, não uma nova Jerusalém.

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Goncourt é de Houellebecq!

E o escritor Michel Houellebecq foi finalmente o vencedor do Prêmio Goncourt! Após anos de  espera e apostas frustradas, o polêmico escritor foi premiado nesta segunda-feira com 7 votos contra 2 da escritora Virginie Despentes pelo livro La Carte et le territoire. Um membro da Academia Goncourt, Michel Tournier, estava ausente.

 

Era a quarta vez que Houellebecq concorria à premiação. Anteriormente ele havia concorrido com Partículas elementares (1998), Plataforma (2001) e A possibilidade de uma ilha (2005).

 

O livro, que saiu no dia 4 de setembro, já era um sucesso de venda nas livrarias francesas, com mais de 200 mil exemplares vendidos. Estimativas dizem que esse número pode triplicar em função da exposição – e do prestígio – trazidos pelo prêmio.

 

A lista com o nome dos concorrentes havia sido divulgada aqui no Ecos da França. Eram 14 autores, alguns deles com obras publicadas em português.

 

Hoje também foi publicado o vencedor do prêmio Renaudot, uma espécie de prévia do prêmio principal do Goncourt. Ele foi entregue à autora Virginie Despentes por Apocalypse bébé.

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Paris: uma história – parte 4!

O último texto que publiquei aqui sobre a história de Paris abordou um período brilhante para a cidade, entre os séculos XII e XIII. Com estabilidade política, o reino da França conseguiu crescer economicamente, Paris tornou-se o centro do mundo intelectual e a cidade tinha a maior população da Europa. No censo de 1328, a estimativa era de que a cidade possuía entre 200 e 250 mil pessoas.

Apenas para efeito de comparação, outras grandes cidades daquele período, como Florença, Gênova ou Veneza, mal ultrapassavam os 100 mil habitantes. E boa parte dessa prosperidade de Paris se devia ao compromisso dinástico com sua capital.

Agora estamos no início do século XIV.  Se os dois séculos precedentes haviam sido de glória, os dois seguintes se caracterizariam como dos mais sombrios na história parisiense. Guerras, doenças, fome, inundações, quebras de safra, geadas, desaceleração econômica, crises sucessórias no poder: tudo isso aconteceu entre os séculos XIV e XV. Até um rei, Carlos VI, passou a sofrer de ataques de insanidade a partir de 1392.

Ascensão dos Valois

E o ano de 1328 marca esse ponto de ruptura com o que vinha se constituindo até aquele momento Paris, em particular, e a França, em geral. Nesse ano, subia ao trono francês Filipe VI de Valois, o primeiro rei que não descendia diretamente de Hugo Capeto! Após 11 gerações e mais de 300 anos, o filho não sucedia ao pai no comando da dinastia real.

Sua ascensão foi possível após os três filhos de Filipe IV, o Belo, morrerem sem deixar herdeiros masculinos. Luís X (reinado entre 1314-1316), Filipe V (1316-1322) e Carlos IV (1322-1328) esgotaram a sorte capetíngia.

Filipe de Valois era primo dos três. E de Isabelle, também filha de Filipe IV. O detalhe crucial nessa história toda é que Isabelle fora casada com Eduardo II, rei da Inglaterra, que morreu no ano anterior, em 1327! No entanto seu filho, Eduardo III,  possuía 16 anos e já havia sido coroado o novo soberano inglês. Ou seja, havia o risco de a França se transformar em uma espécie de feudo inglês se Isabelle fosse coroada rainha da França!

É por isso que os barões do reino francês, então, trataram de consagrar Filipe de Valois, agora Filipe VI, rei da França. No entanto, Eduardo III não vai abandonar suas pretensões de ter a França sob seu controle. O caminho para a Guerra dos Cem Anos (1337-1453) está aberto.

A crise se instala

Talvez por se sentirem desprotegidos em Paris – já que a muralha construída por Filipe II Augusto não era das mais eficientes – ou porque não tivessem uma relação especial com Paris, o fato é que, a partir de Filipe VI, a ausência física dos reis na cidade não era rara. A partir de 1422, os reis simplesmente não residiram mais em Paris, preferindo os castelos no vale do Loire (oeste da França).

A fome era outro problema urgente no século XIV. Diversos fatores se conjugaram na eclosão dessa crise: incapacidade produtiva para alimentar uma populaçao em constante crescimento, especulação de homens envolvidos com os negócios alimentícios e quebras de safra (1314 e 1316).

O clima também não era dos mais agradáveis. Há registros de inundações do rio Sena em 1289 e em 1296-1297. No século XIV, o rio transbordaria 27 vezes! Em 1407, icebergs flutuavam rio abaixo e, de acordo com relatos de cronistas, a tinta congelava na pena de escrever. Nesse mesmo ano, pontes foram arrastadas pelas águas. As enchentes de 1432 paralisaram a vida econômica da cidade por seis meses.

Para complicar ainda mais a situação, em 1347, explode a epidemia da peste, que vai dizimar, em algumas áreas, cerca de 40% da população. Só Paris perdeu provavelmente 50 mil pessoas. Entre 1348 e 1480, não menos do que 36 anos – mais de um a cada quatro anos – foram de peste bubônica na cidade.

E não foi só isso: outras doenças epidêmicas, como a caxumba (1414), a escarlatina (1418), a gripe (1427) e a varíola (1433 e 1438), aumentaram ainda mais o número de vítimas dentro da cidade.

Guerras e recessão econômica. Esses dois fatores combinados serviam como uma justificativa para a imposição de uma mudança que provocaria muitos revoltas populares em Paris e em outras cidades nos anos seguintes: a coleta regular de impostos. A partir do século XIV, eles deixavam de ser cobrados apenas nos domínios reais ou em períodos de exceção. E Paris, a mais rica de todas as cidades, seria tratada como a galinha dos ovos de ouro pela dinastia real.

Em 1355, durante a reunião dos Estados Gerais – com representantes da nobreza, do clero e dos burgueses – a delegação de Paris apresentou um programa de reforma financeira e de erradicação de funcionários corruptos. O grupo era liderado pelo preboste dos Mercadores, um certo Étienne Marcel, uma personagem cujas ações tornariam mais delicadas as relações entre Paris e a monarquia.

Étienne Marcel

O cargo de preboste dos Mercadores tinha grande influência em decisões concernentes a Paris e no que se relacionasse com a economia de maneira mais geral. Ele era uma espécie de representante dos empresários. Étienne Marcel, de forte personalidade, aproveitando o estado de constrangimento da monarquia após sucessivas derrotas para a Inglaterra na Guerra dos Cem Anos – como em Poitiers em 1356 – conseguiu impor diversas medidas ao Estado francês, como a não-desvalorização da moeda e reformas anticorrupção.

Sua crescente influência, no entanto, começou a se esvair em um episódio do dia 22 de fevereiro de 1358. Após a prisão de um membro da burguesia, Marcel lidera uma revolta parisiense e, nesse dia, invade o quarto do delfim Carlos – filho do rei João II e futuro Carlos V – e mata dois de seus conselheiros, os marechais de Champagne e da Normandia.

Para humilhar ainda mais Carlos, Marcel o obriga a usar uma touca vermelha e azul – as cores da cidade – enquanto ele mesmo veste o chapéu real. Esse fato provocaria a ira de Carlos que, logo em seguida, percorreria as comunas do Norte do país tentando provocar a antipatia contra Paris e seu líder todo-poderoso.

A desgraça de Marcel se completou no dia 31 de julho desse mesmo ano de 1358, data em que ele foi assassinado. Ele havia permitido a entrada em Paris de um exército liderado por Carlos, o Mau (rei de Navarra) que incluía em suas fileiras soldados ingleses.

Os próprios burgueses de Paris o mataram, por considerarem que ele havia ido longe demais e suspeitaram que Marcel pudesse entregar o controle da cidade aos ingleses.

Com a morte de Marcel, o delfim Carlos, agora nomeado regente – seu pai era prisioneiro inglês desde 1356 – escolheu perdoar Paris em vez de castigá-la pelo apoio fornecido a Marcel. Os parisienses então decidiram dar uma grande contribuição financeira para o resgate de João II. Também mudou-se o brasão da cidade: agora pairava sobre uma embarcação a flor-de-lis da dinastia real. Pouco tempo depois, adotou-se a divisa Fluctuat nec mergitur (“Aderna, mas não afunda”).

A muralha de Carlos V


Com a morte de João II em 1364, Carlos V finalmente assume o poder e decide morar na cidade. Mas não no palácio da Île de la Cité, onde ele havia presenciado a cena pavorosa do assassinato dos dois marechais. E sim no leste da cidade no complexo de Saint-Paul (ou Saint-Pol). Nos fundos de sua nova residência , manda construir uma nova fortaleza: a Bastilha.

Após a desastrosa derrota francesa para os ingleses em Poitiers em 1356, as autoridades municipais iniciaram a construção de uma nova muralha. Aquela de Filipe Augusto já não oferecia a segurança necessária; era preciso uma proteção mais adequada contra as agressões do exterior.

Só completada no início do século XV, a maior parte dessa estrutura estava pronta na década de 1390. Com cerca de cinco quilômetros, ela circundava 439 hectares, em comparação aos 272 hectares da muralha de Filipe Augusto. No entanto, ela foi toda construída na margem direita, onde moravam quatro de cada cinco parisienses.

Na parte de baixo, em primeiro plano, a muralha de Filipe II Augusto; em cima, ao fundo, a de Carlos V

Uma série de valas profundas e largas, de taludes altos, permitia ao sistema defensivo atingir, nos trechos mais completos, cem metros de largura. Os pântanos do leste foram drenados para fazer um fosso. Para manter o fosso abastecido de água, criou-se um sistema suplementar de eclusas. Houve a instalação de portões novos e mais resistentes ao longo de toda a muralha.

A nova defesa incluía áreas antes deixadas sem proteção, como as terras de cultivo do Temple, de Sainte-Catherine e de Saint-Martin-des-Champs, além de propriedades ao longo da atual rue Saint-Honoré. Por outro lado, áreas desenvolvidas fora das antigas muralhas na margem esquerda, como Saint-Germain-des-Près, Saint-Victor e Saint-Marcel, ficaram ainda mais ameaçadas.

É irônico pensar que a muralha de Carlos V abrangia, em 1450, apenas metade das pessoas que a muralha de Filipe Augusto -que tinha metade do comprimento- antes da década de 1350. A população de Paris caíra mais de 50% entre a década de 1320 e o início da década de 1420. Houve uma recuperação, mas em 1500 a população girava em torno de 150 mil pessoas.

O maior número de portões da nova muralha também não incrementou o comércio. Isso porque, devido à falta de segurança, eles eram interditados por longos períodos, diminuindo o número de entradas e saídas da cidade em relação à época de Filipe Augusto.

Borguinhões versus armanhaques

Em 1380, morre Carlos V. Seu filho, Carlos VI, tem apenas onze anos. O governo passa a ser compartilhado por três regentes, tios de Carlos VI – os duques de Anjou, Borgonha e Bourbon. Passam-se os anos e, em 1388, o herdeiro legítimo do trono consegue encerrar as disputas pelo poder envolvendo seus tios. No entanto, o destino seria cruel com Carlos VI.

Em 1392, ele passa a sofrer de ataques de insanidade, que o perseguiriam até sua morte em 1422. Com sua autoridade enfraquecida, o jogo nas altas esferas do poder começa a se polarizar entre duas facções: a dos borguinhões e a dos seguidores do irmao mais novo do rei, Luís de Orléans (que seriam denominados armanhaques a partir de 1410).

Ouça mais detalhes sobre a loucura de Carlos VI

Essa guerra de facções teria Paris como palco principal. Por exemplo, em 1407, um grupo de homens contratado pelo líder da fação dos borguinhões, o duque da Borgonha, João Sem Medo, comete o assassinato de Luís de Órleans na rue Barbette (3º). A facção dos armanhaques passa então a ser liderada pelo sogro de Luís, Bernardo VII, conde de Armagnac (daí o nome do grupo).

João Sem Medo costura uma poderosa rede de troca de favores com lideranças parisienses, como a dos mercadores navais e a dos açougueiros. A universidade também está ao seu lado. Como reforço, ele ainda possuía a simpatia dos ingleses.

Torre da residência parisiense de João Sem Medo (2º)

No entanto, eventos recorrentes de violência em Paris ao longo dos primeiros anos da década de 1410 fariam com que o prestígio de João Sem Medo na cidade desaparecesse. Em 1413, insurreições lideradas pelo açougueiro Claude Caboche contra apoiadores dos armanhaques deixavam um rastro de sangue e terror nas ruas de Paris.

Quando os “cabochiens” foram neutralizados pelas autoridades de Paris, João Sem Medo se viu desmoralizado pelo fracasso em reprimir a violência daquele grupo. Em agosto de 1413, ele abandona a cidade.

Com o poder nas mãos, os armanhaques se mostrariam ainda mais incompetentes no controle dos setores mais violentos da sociedade parisiense. Tanto é assim que, cinco anos depois de fugir da cidade, João Sem Medo voltou a Paris e foi recebido de braços abertos. O terror nas ruas prosseguiu e o próprio duque foi vítima da violência entre as facções: em setembro de 1419, João Sem Medo foi assassinado.

França: um feudo inglês

Sem uma liderança forte que pudesse unificar o país, a França tornou-se em 1420 possessão inglesa! Em uma cerimônia realizada na Catedral de Notre Dame, no dia 21 de maio, o debilitado rei Carlos VI assinou o tratado de Troyes, que tornou o rei Henrique V da Inglaterra regente da França e excluía qualquer possibilidade do delfim francês assumir o poder após a morte de Carlos VI.

O inglês ainda se casou com Catarina, a filha de Carlos VI para referendar a união política. Guarnições inglesas foram instaladas no Louvre, em Vincennes e na Bastilha.

Para tornar a situação ainda mais instável, em 1422, morreram Henrique V (em agosto) e Carlos VI (em outubro). O filho do rei da Inglaterra não chega a ter um ano de idade! Portanto, assume o poder como regente seu tio, o duque de Bedford (que tinha sua morada em Paris no Hôtel des Tournelles, no Marais).

Bedford possuía enorme estima junto à população de Paris. Ele contava ainda com o apoio do duque da Borgonha Filipe III, o Bom, herdeiro de João Sem Medo. É dentro desse contexto que se deve analisar a aversão que os parisienses sentiam por uma figura importante da história francesa que surgiu nessa época: Joana d’Arc.

Ela se aliou a Carlos VII, que pretendia retomar o poder real para os Valois. Após as vitórias militares obtidas no ano de 1429 em outras cidades, muitos parisienses consideravam a “donzela de Orléans” uma bruxa e temiam também que Carlos VII promovesse um banho de sangue caso assumisse o poder no lugar dos ingleses. Daí a resistência em sua investida contra os portões da cidade no Faubourg Saint-Honoré.

Em 1431, Henrique VI é enfim coroado rei da França na Catedral de Notre Dame. Estava definitivamente oficializada a “ocupação inglesa” de Paris. Exercida, é preciso dizer, de maneira bem leviana. O rei passou menos de um mês na cidade de Paris.

Na coroação não foram observadas sutilezas do protocolo constitucional. E, além disso, foi considerada excessivamente ordinária, com comida escassa e requentada (um pecado para os franceses!).

A aliança anglo-borgonhesa começava a ser vista com desconfiança. O tão almejado estado de paz e tranquilidade com que sonhavam os parisienese ainda era uma quimera.

Com a queda da população, que fugia da violência da cidade, o comércio sofreu enormes perdas. O mercado imobiliário quebrou. Os impostos e os preços dos produtos seguiam altos. E ainda perduravam problemas de abastecimento.

Portanto, não surpreende que, com a morte do duque de Bedford em 1435, os parisienses passaram a ver com simpatia a ideia de se verem novamente sob a autoridade dos reis da França. Grupos pró-francês forçaram então a saída das tropas inglesas da cidade e Carlos VII prometeu anistia aos adversários.

Nesse mesmo ano assinava-se o tratado de Arras, que punha fim às disputas entre borguinhões e armanhaques. Em 1437 Carlos VII entrou a cavalo na cidade. Estavam lançadas as bases de uma nova relação entre a capital e o rei.

Reorganização do Estado

Sim, é certo que a relação do rei com Paris melhorou a partir de Carlos VII. Uma relação amistosa, porém distante. Como dito anteriormente, o rei e seus sucessores – Luís XI (1461-1483), Carlos VIII (1483-1498) e Luís XII (1498-1515) – preferiram ficar nos luxuosos palácios construídos na região do vale do rio Loire.

Deprimida economicamente, essa decisão agravou ainda mais a situação de certos setores de Paris. Afinal, a indústria da tecelagem e o comércio de tecidos dependiam em boa medida do consumo da família real, de outros nobres e da elite clerical, que passaram a deixar a cidade e construir suas residências na região do Loire para ficar mais perto do rei.

Até a tradicional classe dos mercadores navais e o sistema financeiro foram atingidos. Para a indústria da manufatura de Paris sobreviver, era preciso buscar novos mercados.

E esse mercado era (re)composto, de maneira significativa, pelos funcionários oficiais. Essa nova classe de trabalhadores – ligados à área jurídica, administrativa e financeira – era fruto do crescimento do Estado, que se reorganizava depois de quase dois séculos de turbulências. A municipalidade também passava por mudanças e necessitava de pessoal.

Dois atos marcariam profundamente a transformação de paradigma que se operava na segunda metade do século XV: a criação de impostos permanentes e a constituição de forças militares, também permanentes. O Estado se tornava absolutista.

Além disso, uma nova força surgia e reconfigurava as posições de poder dentro da sociedade: a imprensa. Em Paris, esse novo ator ganharia ainda mais importância, pois o papel de centro intelectual do mundo ocidental havia diminuído bastante, em função de polêmicas envolvendo a universidade de Paris.

Ela já não contava mais com o apoio papal e havia passado para a estrutura do Estado. Além disso, ela sofria a concorrência de novos centros de estudo. Se no século XIII, ela disputava a hegemonia intelectual apenas com Oxford e Bolonha, no final do século XV havia só na França, pelo menos, uma dúzia de universidades.

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Prêmio Goncourt

No Brasil, feriado da Independência. Na França, greve contra as reformas na Previdência propostas pelo governo de Nicolas Sarkozy. Terça-feira de comemorações e de protestos, aqui e lá. Mas não, não quero falar sobre isso, até porque isso acaba tendo repercussão na grande imprensa, na televisão e nos jornais.

Prefiro destacar hoje a lista que foi publicada nesta segunda-feira (6) dos pré-selecionados para o prêmio literário mais prestigiado na França, o Prix Goncourt. São 14 nomes espalhados por 13 editoras diferentes. Apenas a Grasset tem dois autores de seu catálogo nessa primeira lista. A premiação será no dia 8 de novembro.

Vamos, pois, aos nomes:

1- Olivier Adam, com Le coeur régulier (L’Olivier)

2- Vassilis Alexakis, com Le premier mot (Stock)

3- Thierry Beinstingel, com Retour aux mots sauvages (Fayard)

4- Vincent Borel, com Antoine et Isabelle (Sabine Wespieser)

5- Virginie Despentes, com Apocalypse bébé (Grasset)

6- Marc Dugain, com L’insomnie des étoiles (Gallimard)

7- Mathias Enard, com Parle-leur de batailles, de rois et d’éléphants (Actes Sud)

8- Michel Houellebecq, La carte et le territoire (Flammarion)

9- Maylis de Kerangal, com Naissance d’un pont (Verticales)

10- Patrick Lapeyre, com La vie est brève et le désir sans fin (P.O.L.)

11- Fouad Laroui, com Une année chez les français (Julliard)

12- Amélie Nothomb, com Une forme de vie (Albin Michel)

13- Chantal Thomas, com Le testament d’Olympe (Seuil)

14- Karine Tuil, com Six mois, six jours (Grasset)

Dessa lista, o nome mais conhecido dessa lista no Brasil é o de Michel Houellebecq, que já teve seus principais livros publicados em português, como A possibilidade de uma ilha, Partículas elementares, Plataforma e Extensão do domínio da luta.

Junto com a divulgação de seu nome na lista do Goncourt, Houellebecq se viu mais uma vez envolvido em polêmica, acusado de plagiar textos da enciclopédia digital Wikipedia em seu novo livro, além de outras fontes, como o do Ministério do Interior francês. Seus livros sempre provocaram reações extremadas, com acusações de sexismo, misoginia e islamofobia.

Em seu site, a revista Le Nouvel Observateur publicou o video de uma entrevista com o autor, nascido em 1956 na ilha de Reunião, em que ele responde às acusações de plágio.

Dos outros autores incluídos na lista,  acha-se alguma coisa em português.  Na Livraria Cultura, de Amélie Nothomb, temos Metafísica dos tubos, publicado pela Record em 2003. E vários outros títulos em francês, inglês e espanhol.

De Chantal Thomas, temos uma biografia do Marquês de Sade (em português de Portugal, de 1995); e também O adeus à rainha, pela editora Girafa (2005). De Marc Dugain, além da versão original do livro indicado para o Goncourt, temos também, em português, dois livros, ambos pela Record: Uma execução comum (2008) e A maldição de Edgard (2007).

É possível também achar obras em francês e traduções em outros idiomas. De Olivier Adam, por exemplo, além de A salvo de nada, lançado em 2009 pela Alfaguara, temos Des vents contraires e À l’abri de rien e muitos outros. De Vassilis Alexakis, que já recebeu o Grande Prêmio da Academia Francesa, e Virginie Despentes, temos somente obras em francês, inglês e até em alemão.

De Mathias Enard, encontrei Zone, título de 2009 que ganhou o prêmio literário Inter. De Patrick Lapeyre, cuja editora esse ano (P.O.L.) é uma filial da Gallimard, há, entre outros, Ludo et compagnie e La lenteur de l’avenir. De Karine Tuil, há La domination e Quand j’étais drôle. De Fouad Laroui, Le maboul.

Com a assinatura de Vincent Borel, há três publicações: Un ruban noir (1996), Vie et mort d’un crabe (2000) e Un curieux à l’Ópera (2006). Somente não encontrei títulos de Thierry Beinstingel. Como compensação, há esse site pessoal do escritor, onde se pode entrar em contato com alguns pequenos textos de sua autoria.

Prêmio Goncourt

O Prêmio Goncourt é considerado uma das maiores distinções literárias que um autor pode receber na França. Surgiu como vontade de Edmond de Goncourt, que em seu testamento de 1896, expressou a vontade de premiar autores de língua francesa.

Que fique claro: o prêmio em si não oferece praticamente nada de dinheiro. Porém, além do prestígio, as vendas nas livrarias tendem a crescer muito. Portanto, o ganho monetário é indireto, mas existe!

Escolhido pela Academia Goncourt, ele já possui mais de cem anos de história. O primeiro prêmio foi concedido em 1902 para o escritor John-Antoine Nau, por seu livro Force ennemie.

Grandes nomes da literatura francesa já foram agraciados com o Goncourt, como Marcel Proust (1919), André Malraux (1933), Simone de Beauvoir (1954) e Marguerite Duras (1984). Em 2009, a vencedora foi Marie N’Diaye, por Trois femmes puissantes (Gallimard).

A escolha é feita após seguidas reuniões dos dez membros da Academia. Esses respeitáveis senhores se reúnem toda primeira terça-feira de cada mês no primeiro andar do restaurante Drouant, localizado na rue Gaillon, em Paris. Discutem, discutem, discutem e, se não chegam a um vencedor, o presidente da Academia tem o voto de Minerva.

Atualmente, o presidente é Edmonde Charles-Roux, de quem eu li no começo desse ano um livro sobre a estilista Coco Chanel.

Agora, é esperar 8 de novembro!

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Cartas do mundo literário

O poeta Alfred de Musset e a escritora George Sand (pseudônimo para Amantine Aurore Lucile Dupin) se conheceram no começo de 1833. Ele tem 22 anos, ela quase sete anos a mais. Ligando-se um ao outro, partem juntos para Veneza, onde em fevereiro de 1834, Musset é vítima de uma grave febre. Pouco tempo depois de ter se curado, o jovem poeta e dramaturgo retorna a Paris.

Nessa época, após traições e muitas crises, os laços entre os dois literatos estão mais frouxos. Mas Musset não se conforma em perder Sand e lhe envia cartas amorosas, às quais ela responde num tom de mãe ou de irmã.

O poeta Alfred de Musset (1810-1857)

No dia 12 de maio de 1834, George Sand está em Veneza, agora com seu novo amante e atual editor Pietro Pagello. Quinze dias antes, em uma carta, Alfred de Musset havia lhe perguntado: “As três cartas que eu recebi, é o último aperto de mão da amante que me abandona ou o primeiro da amiga que me resta?”

Leitura da carta de George Sand a Alfred de Musset

Após a morte de Musset, Sand publicou o livro Elle et lui, que conta a história de amor vivida entre os dois. O irmão do escritor, Paul de Musset, revoltado com a versão apresentada por Sand, publica por sua vez Lui et elle. Pra fechar a história, Louise Colet, que havia também tido uma relação com Musset, escreve Lui.

George Sand também teve uma relação amorosa com o compositor Frédéric Chopin. Eles se conheceram em 1836. No começo do relacionamento, Sand chamava Chopin de “anjo”, gíria parisiense da época para homossexual.

Chopin toca para George Sand (litogravura de A. Karpellus)

Sand, uma escritora feminista e que desafiava muitas das convenções daqueles anos – chegava a usar roupas masculinas -, publicou outro livro com as memórias de seu relacionamento, desta vez com Chopin, o romance Lucrezia Floriani (1847). O compositor rompe os laços com ela, por ela fazer quase uma exposição íntima do casal.

Observação: George Sand teve muitos outros amantes, famosos e não muito famosos. Entre os grandes nomes da literatura do século XIX, manteve um caso rápido com Prosper Mérimée, autor da novela Carmen, que daria origem à conhecida ópera de Bizet.

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Paris: uma história – parte 3!

O século XI se inicia e Paris inicia sua reconstrução. Após a série de ataques vikings do século IX, a cidade parecia paralisada no século X, com boa parte de suas estruturas urbanas comprometidas, principalmente as que ficavam na margem esquerda.

A França, agora, está sob domínio da dinastia capetíngia, que havia construído sua base de poder a partir de Paris. E isso parecia ser um bom sinal para a cidade. Além disso, uma dinastia respeitável deveria ter uma cidade à altura de seu poder e importância. Paris era, claro, a opção.

No período dos primeiros reis capetos, então, Paris se reconstrói em três partes, conectadas por impressionantes pontes de pedra. Na Île de la Cité, temos a sede dos símbolos mais importantes do poder do Estado (o palácio real) e da autoridade da Igreja (a catedral).

Na margem direita, se desenvolve um dinâmico centro de negócios e comércio. E, finalmente, a margem esquerda assume um novo papel, ligado ao ensino e ao aprendizado.

Neste início de milênio, importante ressaltar o relativo estado de paz que reina entre os diversos reinos europeus. Sem guerras atrapalhando os negócios, há espaço para uma rápida expansão econômica, em especial dentro de certas áreas, como as regiões da Île-de-France, de Champagne e de Flandres.

Um dado que nos indica como Paris se consolidava como um pólo de crescimento é o tamanho de sua população. Estima-se que a cidade possuía em 1100 cerca de três mil habitantes. No ano de 1300, sua população é estimada por volta de 200 mil pessoas. Um aumento e tanto! Mas o que aconteceu nesse meio tempo para que ela atraísse tanta gente?

Aqui entra a Igreja Católica, cujas instituições eclesiáticas tiveram papel preponderante no processo de repovoamento de Paris, tanto na margem esquerda quanto na direita. A construção de abadias e igrejas estimulava a ocupação em diversos pontos espalhados pela área em torno da Île de la Cité.

Na área em torno da abadia de Saint-Germain-des-Près, por exemplo, uma grande população de servos atendia às várias necessidades agrícolas e de mão-de-obra dos monges. Em troca, a abadia permitia que os novos residentes atraídos para suas propriedades estabelecessem granjas ou pequenos lojas mediante o pagamento de uma cota anual.

A partir de outras atividades, mas seguindo o mesmo padrão de ocupação, outras igrejas estimulavam o crescimento populacional e econômico. Na margem esquerda ainda, Saint-Sulpice, Saint-André-des-Arts, Saint-Côme. Na margem direita, Saint-Nicolas-les-Champs, Saint-Martin-les-Champs, Saint-Merri, Saint-Gervais, Sainte-Opportune, Saint-Germain-l’Auxerrois.

A riqueza obtida pela Igreja a partir da agricultura e do comércio era investido no financiamento de manufaturas de tipo mais refinado e também no patrocínio de arquitetos, escultores, joalheiros, ourives, especialistas em vitrais, iluminadores de manuscritos e outros artífices.

Também sob a égide da Igreja, Paris torna-se um conceituado centro de estudos. Além da tradição que se consolidava na área de Saint-Germain-des-Prés e Sainte-Geneviève, uma outra começava a ganhar destaque ao redor da Petit Pont, que ligava a margem esquerda à Île de la Cité.

Mais tarde, esse pedaço da cidade, onde estudantes e professores discutiam os “grandes temas” ficaria conhecido como Quartier Latin, em reconhecimento à língua usada nas discussões.

A atmosfera de vitalidade intelectual, religiosa, comercial e agrícola que a Igreja desenvolvia na cidade servia muito bem aos interesses da dinastia capetíngia. Os reis encaravam a Igreja como esteio ideológico do poder real.

Não à toa, a partir de Luís VI, o Gordo (reinado entre 1108 e 1137), os monarcas utilizam Paris como residência oficial com frequência cada vez maior. Detalhe: foi Luís VI quem primeiro utilizou o termo “França” para se referir a seus domínios, em uma carta ao papa Calixto II datada de 1119.

O reinado de Filipe II Augusto (1180-1223)

Se tivéssemos que escolher apenas um rei cuja importância para o desenvolvimento futuro de Paris foi decisivo, seria sem dúvida o rei Filipe II Augusto. Não somente pela muralha que mandou construir em volta da cidade – e que mais tarde determinaria o traçado de muitas ruas e avenidas – e por outras obras de caráter urbanístico, mas sobretudo pelo peso simbólico ao qual quis associar Paris.

Senão vejamos alguns fatos: Filipe II casou-se na cidade, na catedral de Notre Dame em 1215 (sua construção havia se iniciado em 1163); além de possuir o palácio real na Île de la Cité (preservado em parte no prédio da atual Conciergerie), ele fez levantar a fortaleza do Louvre na extremidade oeste de sua muralha e que também serviria como residência da dinastia.

Assim, apesar da marca da itinerância dos reis medievais, enraizava-se a noção de que a autoridade real estava fixa e estabelecida na capital do reino. De fato, a expresão caput regni (cabeça do reino, capital) passou a ser utilizada nesse período.

A cidade então passa a abrigar as estruturas administrativas embrionárias do Estado, como o tesouro real, a chancelaria real e o Parlamento, além da casa real e sua comitiva. Como sempre, havia a intenção deliberada de fazer comparações com Roma, a começar pelo nome do rei que carregava um “Augusto” (título dos imperadores romanos).

No caso da muralha, sua construção não se restringia apenas a aspectos da política internacional (leia-se a defesa em momentos de guerra). Filipe II desejava consolidar os territórios ainda não desenvolvidos dentro dos limites da muralha. Glebas agrícolas ou não utilizadas intramuros forneciam alimentos em caso de cidade sitiada, mas também eram oportunidade de desenvolvimento urbano.

A muralha e seus 12 portões marcando os principais pontos de acesso à cidade não apenas delinearam a forma física da cidade, mas estruturaram a mobilidade, a circulação e a sociabilidade internas, a serviço dos interesses da dinastia real.

Outro fato importante: a escolha de Paris como capital real incitava os amigos e protegidos do rei a se estabelecerem na cidade. Desejando igualar-se a seu superior, construíram imponentes residências locais. As instituições religiosas também participam desse movimento, com as residências episcopais ficando, principalmente, na margem esquerda.

Vestígios da muralha de Filipe II ainda visíveis na rue Clóvis (5º)

Vocação comercial

Desde as suas origens, Paris se destacou no comércio. No início, foram os negócios de longa distância que fizeram a fortuna da cidade. A partir sobretudo do século XII, essa carcterística se reforçou com o desenvolvimento do comércio em nível local. Algumas áreas em especial serviram como motor desse crescimento.

A principal delas é a que veio a ser chamada posteriormente de Les Halles e que manteve basicamente a mesma função durante oito séculos até ser desmantelada nos anos 50 do século passado. E como ela surgiu?

Antes de sua morte, em 1137, Luís VI criara um mercado público nas áreas abertas ao norte de onde hoje se encontra a igreja Saint-Germain-l’Auxerrois em parceria com o bispo, que tinha interesses imobiliários na região. Com o acordo, o bispo renunciava à maior parte de seus direitos senhoriais e pretensões territoriais sobre a região em troca de uma fatia dos lucros do novo mercado.

Mais tarde, Filipe II deu outro impulso ao mandar construir dois grandes armazéns no local, um para os mercadores de grãos e outro para uma série de vendedores de outros produtos alimentícios.

Outro área desenvolvida a partir do comércio ficava no local mais tarde conhecido como Marais (basicamente o 3º e o 4º arrondissements). Em 1153-1154, o rei Luís VII autorizou os cônegos de Sainte-Opportune a aproveitar os terrenos disponíveis não cultivados. Eles conseguiram transformar essa área em hortas e lavouras usando o antigo curso do rio Sena (na época, mais largo) como canal de irrigação.

A iniciativa trouxe imensa riqueza a Sainte-Opportune e serviu de estímulo para que outras instituições religiosas tentassem o mesmo. Logo havia numerosas áreas plantadas na zona nordeste circundadas pelas muralhas de Filipe II, exploradas por grupos como os templários, a abadia de Saint-Martin-des-Champs, a igreja Saint-Gervais e o convento de Sainte-Catherine, ao norte da Place Baudoyer.

Pelas condições precárias das ruas parisienses nessa época, o meio mais confiável para transportar mercadorias de longa distância ou de grande volume era o rio Sena, o que conferia um poder econômico e social mais elevado aos mercadores navais – versão capetíngia dos poderosos barqueiros do início do domínio romano sobre a cidade.

Para termos uma ideia do poder desse grupo social, basta citar o fato de que, quando o rei Filipe II partiu para as Cruzadas em 1190 entregou a supervisão e administração real a “seis íntegros e dignos” parisienses, todos representantes dos mercadores navais. Significativo também que o selo usado por esses profissionais tenha se tornado depois o selo da própria cidade de Paris.

O século XII também foi testemunha da consolidação das chamadas “corporações de ofício”, que reuniam profissionais de um mesmo setor da economia estabelecendo regras precisas de atuação (preços, qualidade dos produtos, quantidade, etc). No final daquele século, havia mais de 100 negócios incorporados, entre os quais alguns altamente especializados (corporações especializadas em chapéus de feltro, outras de chapéus de algodão) e outros não-especializados (padeiros, tecelões, sapateiros, etc).

Os nomes de ruas forneciam um guia dessa especialização industrial e comercial. A documentação fiscal mostrava muitos fabricantes de peles (pelletiers) na rue de la Pelleterie, muitos sapateiros (savetiers) na rue de la Saveterie e assim por diante. Outros nomes de ruas eram mais curiosos: rue de la Grande Truanderie (algo como rua da Grande Vagabundagem), a rue Pute-y-Muse (rua Aqui se Diverte Prostituta) ou ainda a rue Coupe-Gueule (rua do Degolador).

Além disso, os comerciantes de cada ramo de negócio se associavam em confrarias, que eram ligadas a instituições religiosas. Assim, a confraria dos açougueiros era associada à igreja de Saint-Jacques-de-la-Boucherie na margem direita, próxima a vários de seus estabelecimentos e onde acontecia boa parte de sua vida social.

A Universidade

Ao lado dessas corporações comerciais e industriais, um outro grupo vinha ganhando destaque na vida social de Paris: o dos mestres e estudantes ligados à universidade. Alguns clérigos não aprovavam a sociabilidade um tanto mundana dessa turma na margem esquerda. “Fujam desse ambiente babilônico” ou “Descobrirão mais nas florestas do que nos livros” eram algumas das advertências feitas aos mais jovens.

No entanto, a coroa tinha uma visão mais positiva sobre esse grupo. Não só porque eles movimentavam um setor da demanda urbana – como alojamentos, alimentação, cópia de manuscritos – mas porque fomentavam uma reputação internacional de uma Paris erudita, o centro mundial de ensino e aprendizado.

Os estudantes eram frequentemente fonte de problemas para a coroa. Em 1200, uma pancadaria em uma taverna deixou cinco pessoas mortas. Em 1229, uma agitação estudantil – sim, ela já existia nessa época! – no Bourg Saint-Michel teve como saldo um estudante morto. Por causa desse episódio, os estudantes simplesmente abandonaram Paris só retornando dois anos depois, a pedido do Papa.

A bula papal Parens Scientarum, de 1231, reconheceu a universidade como “a mãe das ciências, (…) ornamento da Igreja, escudo da fé, espada espiritual da milícia cristã”. O documento apoiava as reivindicações de mestres e estudantes de ter autonomia perante o bispo de Paris e seu chanceler.

Após obterem o título de mestre na faculdade de artes, os estudantes podiam continuar em cursos superiores de teologia, medicina e direito canônico. O corpo estudantil era formado por gente de todas as partes da Europa, o que incitava algumas rivalidades relacionadas às origens de cada um.

Um sinal de maturidade institucional da universidade foi o surgimento do sistema colegiado. A partir da metade do século XIII, a criação de uma série de novos colégios dentro da universidade era parte do esforço de oferecer algo melhor do que faziam as ordens religiosas mendicantes (como os franciscanos e dominicanos) que desenvolviam programas de ensino populares a estudantes mais pobres.

Um exemplo: em 1257, Robert de Sorbon, o capelão real, funda uma nova faculdade com o apoio do rei Luís IX (que seria canonizado em 1297, transformando-se em São Luís). A Sorbonne oferecia instrução e também alojamento, além de disponibilizar o acesso a uma das melhors bibliotecas de Paris.

Havia, no entanto, muito controle intelectual e os colégios se preocupavam com a moralidade dos estudantes. Acadêmicos foram utilizados durante as Cruzadas para ajudar a pregar a fé cristã em outras regiões, como na repressão da heresia albigense.

Apesar disso tudo, Paris tinha motivos de sobra para se orgulhar no final do século XIII: uma agricultura em franco desenvolvimento nos arredores, uma classe mercantil empreendedora liderada pelos mercadores navais, uma crescente base de habilidades nos diferentes ramos de negócios e a hegemonia cultural da universidade, tudo isso apoiada por um dos Estados mais poderosos da Europa Ocidental. No entanto, alguns desses elementos ficariam comprometidos a partir do século XIV.

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Simples coincidência?

O tema deste artigo se impôs a mim de maneira aparentemente aleatória. Poderíamos dizer que uma coincidência me levou – me obrigou – a escrever este texto. Não sei se acontece com alguém mais, mas a leitura de um livro para mim se assemelha em alguns pontos a uma maratona.

Ou seja: ao longo do livro, eu imprimo um certo ritmo que se mantém mais ou menos constante, alternado com algumas aceleradas e algumas reduções de velocidade.  Chegando próximo do fim, sou tomado por um sentimento que me impele a ler avidamente as últimas páginas, como o corredor que dá o sprint final para vencer a corrida.

Bem, isso aconteceu hoje mais uma vez. O livro? A biografia de Charles Baudelaire escrita por Jean-Baptiste Baronian (editada pela L&PM). O livro termina exatamente no dia da morte do grande poeta. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que foi justamente em um 31 de agosto que Baudelaire deixava o Purgatório na Terra para sempre!!! Portanto, há 143 anos – Baudelaire morreu em 1867 – a Humanidade perdia uma de suas glórias literárias.

Eu sei que é uma coincidência besta, mas ainda assim me deixa intrigado. Ao contar isso para uma amiga minha – ma bien-aimée – ela me disse que eu perseguia a França e a França me perseguia. Que assim seja e que assim continue, portanto! Eu até tentei procurar um significado mais concreto, mais profundo, existencial ou metafísico, mesmo algum mais macabro, mas não encontrei nada que me satisfizesse. Talvez daqui a alguns anos eu compreenda melhor o que ocorreu hoje…

De qualquer maneira, fica registrado aqui para todo o sempre esse meu texto que encaro como uma espécie de homenagem àquele que serviu como a ligação entre dois momentos da literatura francesa, a ponte entre a geração de Victor Hugo e Honoré de Balzac e aquela de Mallarmé e Verlaine.

Foto tirada em 1855 por seu amigo Nadar

Agora não posso deixar de ser sincero aqui. De ou sobre Baudelaire, além da biografia já citada, li apenas um livro: Paraísos artificiais, um livro que relata suas experiências pessoais com o haxixe, com o ópio e com o vinho, além de uma análise do livro de Thomas de Quincey, Confissões de um comedor de ópio. Eu sei: é imperdoável não ter lido As flores do mal, sua obra mais importante e conhecida. Prometo fazê-lo em breve.

Mas se posso levantar algum argumento aqui em minha defesa, é que a poesia sempre me assustou. Na minha família, não recebi muitos incentivos para ler, sejam romances, sejam livros de poesia. Na escola tampouco. Aliás, foi bem o contrário. Durante o colégio, desenvolvi um verdadeiro trauma em relação à Literatura que só recentemente venho superando.

Com Baudelaire, decidi encarar primeiro o Paraísos artificiais. E confesso que me surpreendi pela clareza da linguagem, a simplicidade do estilo. Não sei, imaginava algo mais rebuscado, intransponível em uma abordagem mais direta. E me surpreendi também pelo tratamento do tema. Sobre isso, achava que o livro seria uma espécie de apologia do haxixe e do ópio, o que se revelou uma ideia preconcebida falsa.

Sem negar as maravilhas e os delírios visuais proporcionados pelas drogas, Baudelaire mostra como o acesso a esses paraísos se faz à custa de um preço altíssimo. A leitura do livro exige cuidado, porque ele foi escrito em uma época em que não existiam cartéis de drogas nem em Medellín nem no Rio de Janeiro, Fernandinho Beira-Mar ou toda a rede de crime organizado em torno do consumo de drogas que se vê atualmente. Na época, não existiam os Narcóticos Anônimos nem clínicas de reabilitação para dependentes químicos. E ainda assim, Baudelaire se mostra absolutamente contemporâneo na forma como trata a questão.

Curioso foi constatar na biografia de Baudelaire a pouca atenção que Baronian  deu à presença dos excitantes na vida do poeta francês. Quase não se menciona o uso das substâncias, o que, a meu ver, é extremamente positivo, pois não reduz Baudelaire a uma caricatura de usuário de ópio e haxixe, focando a atenção nas dificuldades que ele enfrentou ao longo da vida.

Em certo sentido, a vida que conhecemos de Baudelaire a partir desse livro nos confirma alguns dos estereótipos relacionados à vida de um “verdadeiro” artista: penúria financeira, ausência de glória em vida (e reconhecimento póstumo), liberalidades sexuais pouco comuns, o próprio uso da droga, a busca por um “ideal” artístico ou uma por “pureza” essencial da Arte, um certo egoísmo próprio aos grandes espíritos, etc.

Sim, encontramos tudo isso. Mas também conhecemos, digamos assim, o outro lado da moeda. Por exemplo, Baudelaire se mostrou uma pessoa extremamente caridosa e compreensiva – sem ser piegas  – com pessoas de seu círculo íntimo, como a amante Jeanne Duval, a quem ajudava financeiramente, mesmo com o pouco que tinha.

E também, ao mesmo tempo em que mantinha uma vida permeada de diversas amantes e prostitutas, Baudelaire nutria um imenso amor – que chegava às raias da divinização – por uma mulher chamada Apollonie Sabatier, a Madame Sabatier, ou a Presidenta, que reunia em sua casa nas tardes de domingo escritores, pintores e músicos para animadas reuniões.

Antes de ambos se entregarem um ao outro, numa época em que seu amor se mantinha escondido – mal-disfarçado, é verdade – Baudelaire escreveu estas palavras em uma carta não-assinada para Madame Sabatier, em 1854:

Eu não sei se jamais me será concedida a doçura suprema de eu mesmo falar do poder que a senhora adquiriu sobre mim e da irradiação perpétua que sua imagem cria no meu cérebro. Estou simplesmente feliz, no momento presente, de jurar-lhe novamente que jamais o amor foi mais desinteressado, mais ideal, mais cheio de respeito, que aquele que nutro secretamente pela senhora e que esconderei sempre com o cuidado que este terno respeito me ordena.

Combinemos que um simples devasso não seria capaz de escrever estas linhas! Mesmo que depois ele tenha lhe dedicado poemas de caráter mais sensual, o fato é que a personalidade de Baudelaire era muito mais matizada no que se refere a seus sentimentos do que fariam crer alguns comentários de seus críticos, sobretudo após a publicação de As flores do mal.

O livro de Baronian é curto, com cerca de 180 páginas, mas mesmo assim, o esforço por apresentar um homem complexo em todas as fases de sua vida é louvável: Baudelaire é tudo – esforçado, rancoroso, honesto, dissimulado, leal, mimado, lúcido, egoísta, revolucionário, reacionário, desorientado, determinado!

Morreu cedo, com 46 anos! Antes escrevera muito por meio de textos para jornais e revistas, depois reunidos em livros. Pintura, literatura e música: suas grandes paixões. Espírito contraditório por excelência! Discípulo e mestre. Para mim, a partir de hoje, um guia espiritual, no sentido que os franceses dão ao termo “esprit”: ligado ao pensamento e à atividade intelectual.

Viva Charles Pierre Baudelaire!!!!

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Palestras na Aliança Francesa

Essa foi uma dica enviada por uma amiga minha. Uma série de debates com intelectuais franceses e brasileiros em São Paulo na sede da Aliança Francesa! Aconteceu uma no dia 25 agora, com Caroline Fouret, que abordou o tema “Multiculturalismo e laicidade”.

Mas sem crise! Para quem tem intersse, ainda vão ocorrer dois encontros, ambos às 19h30 e com tradução simultânea. O próximo é no dia 14 de setembro, uma terça-feira. Jean Noel Jeanneney vai falar sobre “Internet e cultura, perigo ou felicidade?” Jeanneney ainda vai falar no dia 13 em Brasília e no dia 16 no Rio de Janeiro.

E finalmente, no dia 26 de outubro, Dominique Wolton apresentará a palestra “Informar não é comunicar”. Wolton tem outras datas em outras cidades, todas no mês de outubro:  19 (Rio de Janeiro), 21 (Campinas), 22 (Porto Alegre), 25 (Curitiba), 27 (Brasília) e 29 (Fortaleza).

A sede da Aliança Francesa no centro fica na rua General Jardim, 182.

Quem é quem

Jean-Noel Jeanneney


Formado pelo Instituto de Sciences-Po de Paris, Jean-Noël Jeanneney leciona história da política e história das mídias no Instituto Político de Paris. É também autor de vários livros sobre esses temas, por exemplo “Le Monde de Beuve-Méry” (1979), “L’ Argent caché” (1981) e “Chroniques sur l’actualité du passé” (1987).

Jean-Noel Jeanneney

Co-fundador da revista L’Histoire, é membro do conselho de administração da École normale supérieure, presidente de honra do Festival internacional do filme histórico de Pessac e presidente do conselho de orientação do canal de televisão a cabo Histoire.

Suas atividades públicas levaram-no a presidir a Radio France e a Radio France Internationale de 1982 a 1986 e a exercer também as funções de Secretário de Estado. De 2002 a 2007, Jean-Noël Jeanneney foi presidente da Bibliothèque Nationale e, em 2009, foi eleito presidente do festival “Rencontres d’Arles”, substituindo assim François Barré.

Dominique Wolton

Formado em direito  pelo Instituto de Ciências Políticas de Paris, doutor em sociologia, Dominique Wolton é atualmente Diretor de Pesquisa do C.N.R.S. (Centre National de la Recherche Scientifique). Ele dirige o laboratório “Informação, comunicação e objetivos científicos” desde 2000.
Ele criou e dirige a revista internacional “Hermès” desde 1998 (CNRS Editions) Ele dirige também a coleção “Comunicação”, por ele criada em 1998 (CNRS Editions). Ele é membro do Conselho de Admistração do Grupo France Télévision e de France 2, membro da Comissão francesa da UNESCO e Presidente do Conselho de Ética publicitária.

Dominique Wolton

Sua área de pesquisa concentra-se em inúmeros estudos, na análise das relações entre cultura, comunicação, sociedade e política. Depois de ter escrito muito sobre a mídia, a comunicação política, a Europa e a Internet, atualmente ele estuda as consequências políticas e culturais da globalização da informação e da comunicação.

Para Dominique Wolton, a informação e a comunicação são um dos desafios políticos mais importantes do século XXI e a convivência cultural deve ser imperativamente construída, como condição para a terceira globalização.

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A nova fazenda francesa

Nesse mês de agosto, saiu uma reportagem de capa na revista Time que aborda a situação enfrentada pelos fazendeiros franceses em face das atuais condições do mercado agrícola, com maior competitividade global, baixa dos preços e subsídios governamentais cada vez mais menores.

O repórter Bruce Crumley percorreu áreas rurais na França, da Aquitânia a Picardia, e descobriu que a diversificação de atividades nesse setor bastante tradicional da economia francesa tem se mostrado uma saída eficiente para sobreviver em um mercado dominado por grandes companhias alimentícias que querem comprar cada vez mais barato.

Hospedagem de turistas, vendas diretas ao consumidor – inclusive pela internet -, visitas guiadas para conhecer o modo de vida no campo, passeios a cavalo. Essas e outras soluções vêm sendo adotadas por uma parte dos fazendeiros franceses – uma parte ainda pequena, mas em crescimento.

Na reportagem, existe uma mistura de “a vida como ela é”, ou seja, exemplos de famílias que se adaptaram para sobreviver, junto com números oficiais do setor agrícola, tudo misturado com apontamentos sobre a situação mais geral na qual se desenrolam aquelas histórias particulares.

Apenas para resumir esse quadro mais amplo, Crumley cita o processo de globalização que permite que as empresas possam comprar produtos mais baratos fora da França, como o trigo na Ucrânia ou o morango em Marrocos, forçando os preços para baixo. Há também a questão dos subsídios europeus para os agricultores, que vem diminuindo ano a ano.

A combinação de preços mais baixos (menos renda), menor ajuda estatal e maior competitividade global provoca situações de tensão. Há dados que mostram que a taxa de suicídio entre fazendeiros na França cresceu muito nas últimas quatro décadas e hoje é muito maior do que comparado com outras profissões.

A França rural busca novas formas de se manter viva e bela

Isso tudo em um cenário no qual o número total de fazendas caiu de 2 milhões em 1960 para cerca de 657 mil atualmente e que pode chegar a 320 mil em 2020. Menos fazenda, menos gente trabalhando no campo: de seis milhões em 1955 para cerca de 1 milhão em 2007.

Uma dessas pessoas é Nathalie Bertranine, 32, que em 2005 assumiu a direção da fazenda de 62 hectares dos pais. Ela então transformou os antigos celeiros em estábulos modernos e criou um ringue para equitação voltado aos turistas que visitam sua fazenda. Com uma média de 115 passeios por semana, essa atividade representa 50% de sua renda anual e mudou a vida interna e o funcionamento da fazenda.

Antes de deixá-los apreciar o texto e as fotos que acompanham o artigo, é importante ter em conta o seguinte: primeiro, a França é o maior produtor agrícola europeu. Isto significa que qualquer mudança nessa área afeta muito mais a França que outro país do continente.

Segundo, o próprio jornalista lembra a especial atenção que os franceses dedicam ao campo, para alguns a “França profunda”, a “França real” e como ele foi importante no seu processo de desenvolvimento econômico.

Hoje, o turismo nas fazendas está ligado ao desejo de aprender e interagir com as pessoas e com os animais que alimentaram a nação e sua cultura por séculos e cujo estilo de vida está em vias de desaparecer. De acordo com órgãos oficiais, o turismo do campo gera uma receita anual de cerca de 25 bilhões de dólares na França.

Em um livro de 2007, o britânico Graham Robb lembra como no final do século XIX os franceses da cidade ainda possuíam sérias reservas para com seus conterrâneos do campo, vistos como semi-selvagens. Foi somente a partir do desejo dos líderes políticos de construir um país mais estável e integrado que se lançaram as sementes para o futuro caso de amor dos franceses com sua face rural.

E finalmente, Nicolas Sarkozy se preocupa com a situação dos fazendeiros, que representam uma parte importante de seu eleitorado, que em vista das recentes dificuldades, migrou para a ala mais conservadora da direita, a Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen.

No fim das contas, como diz Crumley, não sós os franceses enxergam algo mágico nessa França das paisagens rurais: os telespectadores de TV do mundo todo também se encantam com elas ao assistirem o Tour de France.

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